sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Exposto

“De surpresa de descobrir uma alma insuspeita, fiquei com os olhos cheios de água, na verdade eu chorava. Percebi que meu filho, quase uma criança, notara, expliquei: estou emocionada, vou tomar um calmante. E ele: Você não sabe diferenciar emoção de nervosismo? Você está tendo uma emoção. Entendi, aceitei, e disse-lhe: Não vou tomar nenhum calmante. E vivi o que era para ser vivido.” (Clarice Lispector)

Outro dia escrevi um texto chamado “Sertralina”, falava ele, de forma sutil, sobre como me sinto quando faço uso dessas drogas antidepressivas. Eu me sinto, realmente, daquele jeito: no fundo de uma piscina. Todos meus sentidos e sentimentos parecem amenizados, como submersos em água funda. Nada me comove muito, nada me fere demais. E é essa, ao que suponho, a intenção das pílulas.

Angustia-me, no entanto, esse “não sentir”. Quando morreu um gato meu, muito querido, eu tomava Fluoxetina. Não chorei. Não expressei nada. Senti muito e rendeu-me esse sentimento metade da minha monografia, escrita com contida fúria, como espécie de vazão/distração.

Eu sou dos que tem pele exposta. Eu sou dos que sentem demais. Tudo em mim é exagero, nada é sutil demais. Por isso as drogas. Elas me mantêm numa normalidade apenas anestésica. Elas fazem com que eu soe apático, portanto, normal. Há no mundo gente assim, sensível em exagero. Gente com os nervos do lado de fora, a quem simplesmente viver gera uma dor insuprimível.

Agora, depois de alguns dias mergulhado em Sertralina, parei com o medicamento. E acontece que hoje tudo deu para me comover. Na vinda para Passo Fundo, vi uma coisa de uma beleza singela e isso foi o suficiente para fazer com que em mim vibrassem cordas insuspeitas. Vi uma lebre marrom correr para um campo de trigo maduro. Imagem idílica, poética, coisa de sonho. Uma lebre de pêlo marrom-avermelhado, orelhas bem arrebitadas e pés enormes. Gorda de satisfação viva, saltitando apressada para se esconder no trigo dourado. No mesmo instante, entrevi, nas minhas ilusões de pesadelo, a lebre ser ceifada e moída toda em cacos de sangue por uma máquina moderna dessas. O trigo há de ser colhido. Os homens precisam farinha. O Pão nosso de cada dia, ainda que nos custe a lebre – talvez gorda de prenhe.

Com custo dissipei tudo isso de mim. Vi outros campos, alguns verdes, outros não. Chegando aqui e esperando outro ônibus, dessa vez para ir à universidade, entrevi um grupo de crianças embarcando em excursão de escola. Entre risos de pura excitação e pais munidos de máquinas digitais, os pequenos embarcavam, travesseiros em punho, rumo à alguma aventura. Ficou em mim latente os sentimentos de ser criança e viajar. Veio ainda uma paternidade apenas adivinhada, um sentimento de precisar ser amado por um pedaço meu. Ana Mel me sorriu da esquina.

Chegado o ônibus e dissipadas as novas emoções, entrou nele uma menina, de quem nem o rosto vi, mas cujo perfume era o mesmíssimo de minha amiga-irmã. Aquela, que foi para os Estados Unidos e a quem eu prometi não ficar triste com isso. Afinal, como eu disse em outro texto aqui, seria egoísmo meu. Essa viagem era o maior sonho dela. Apesar disso, nas despedidas, eu me engasguei inteiro, tamanho choro represado – Sertralina.

Temos nos falado por MSN. Ela prometeu ligar qualquer dia desses. Mas nem toda fala virtual do mundo eu trocaria por um abraço hoje. Livre dos grilhões medicamentosos, aquele simples cheiro no ar me fez as lágrimas brotarem fartas, em um ônibus municipal qualquer. Chorei, contido, porque assim sou; silente, mas chorei. Chorei por lembrar o quanto passamos juntos, chorei por pensar em tudo que ela fez por mim, chorei por sentir uma falta imensa daquela mariposa que voa em volta da luz.

Mas agora chega. É preciso — com ou sem antidepressivos — botar ordem em tudo por aqui. Sorrir à toa e não chorar por nada. É preciso que eu erga meus muros de contenção, represe lágrimas, enrede nervos. É preciso viver, apesar de sentir.

Um comentário:

  1. Texto emocionante. Como eu acho que a vida real é.

    Um abraço, meu amigo.

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