O pânico de ser encontrado.
Não consigo estar aqui em Passo Fundo sem experimentar essas duas sensações, alternadamente. Nessa cidade que é minha, ando com o olhar perdido nos plátanos, sabendo que tudo aqui me pertence. Sou mais leve caminhando nessas ruas cheias, esbarrando em pessoas com sacolas grandes, sentando no banco de uma das praças e pegando um papel para simplesmente escrever. Aqui nada me é estranho. Porque aqui eu pertenço. Finalmente.
Desde criança é assim. Entrar em Passo Fundo, ver os prédios, as construções, as sinaleiras e a agitação me é sempre reconfortante e familiar. Não importa que eu nunca tenha morado aqui. É minha casa.
Na escola eu compreendia o porquê de ser diferente. Enquanto todos os outros tinham nascido ali mesmo, nas profundesas vermelhas da Cratera, eu tinha vindo. Vindo de Passo Fundo. Não era em vão que eu jamais me encaixaria.
De pequeno, tão logo cruzássemos o trevo eu perguntava: Pai, foi aqui que eu nasci, né? Foi. A mesma resposta que me soava doce. Soava como um motivo, como uma explicação, como um atestado de que eu pertencia a algum lugar. De que eu brotara ali e de que, portanto, alguma raíz decerto havia ficado.
Aqui, em Passo Fundo, nunca me invadiu a insanidade de dizer "quero ir pra casa". Insanidade porque digo isso em Cratera, até mesmo no meu quarto. De repente penso assim e rio de mim. Que bobo. Pois se estou no meu quarto. A alma, que sussurrou isso, no entanto, sabe... Em Cratera eu jamais estarei em casa.
Acompanhando sempre essa leveza de ar, essa graça boba e descomplicada de ser parte do chão em que se pisa me vem, de súbito, o pânico.
Em Passo Fundo eu tenho medo do encontro.
Ou não do encontro, mas do reconhecimento. O medo vem quando alguém me olha por tempo demais. Ou quando franze os olhos, estreita o rosto e faz cara de "mas de algum lugar eu te conheço". Fujo. Desenfreado fujo.
Eu nasci aqui e fui adotado ainda pequeno. Não sei nada de minha família biológica. Por isso o medo. De pequeno, me fascinava pensar que em qualquer esquina podia estar uma irmã minha, um irmão, um primo, um pai. Divertia-me o enigma.
Hoje me apavora. Apavora que num desses olhares eu possa ler na cara do outro escrito assim: "Mas esse homem... ele é a cara do fulano. Como pode?" Ou então: "Mas é tão parecido com beltrano... Podia até ser filho."
Então estremeço quando me olham por tempo demais. E disparo feito gato arisco. Esqueço plátanos, bancos e praças. Fujo até a próxima esquina, que é quando consigo voltar a respirar, ainda que ofegante.
Não sei qual o meu medo. Nem sequer o justifico. Só tremo todo, como treme quem não quer mais ser encontrado. Quem se satisfez em estar perdido. Como deveria fazer um cãozinho jogado do carro. Mas o cãozinho não faz, o orgulho é contra sua natureza canina.
Mas a minha é felina. E meu orgulho é ferrenho. E hoje mesmo me dei conta de que meu gato tatuado também nasceu aqui. Um dia antes do meu aniversário - ou no dia do meu aniversário [?]. Pertencemos os dois a esse lugar. E aos mistérios do meu pertencimento obscuro. Sim, porque pertenço de graça, como se decifrar minha esfinge a matasse. Como se descobrir de onde eu realmente vim me quebrasse inteiro.
Por isso o medo?
Não. Não sei.
Sei que uma senhora já me olha há tempo demais. Hora de escapar de novo, e bem rápido, antes que ela seja minha mãe.
No final, como não te imaginar fugindo?
ResponderExcluirE me pergunto: será que não fugimos o tempo todo de nós mesmos? Independente da memória... há algo acima, há algo entre, há algo no vão de nós que grita um constante incômodo.
Somos fugitivos de nós mesmos em constante retirada.
Um beijo, cincodezembrista querido.
Há muitas lembranças, mas nenhum lar tão presente assim. Invejo-o
ResponderExcluir