segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Só de uma canção

Anoitecia e a brisa de chuva nos lambia os corpos nus. Despertamos lentos, na tua cama de borboletas azuis. A música tocava ao lado, embora parecesse vir de longe. Lembro de ti, teus olhos nos meus, teus braços envolta de mim, tua boca dedicando a mim aquela canção.

Adoro essa sua cara de sono

Nunca durmo antes de ti. Sempre espero; meu corpo encaixado no teu, minhas mãos alisando teus cabelos. Se acaso tens insônia, minha voz te canta bem baixinho "Dust in the wind, all we are is dust in the wind...". E teu corpo todo se relaxa, tua respiração se acalma, teu sono vem.

E é sempre do teu lado que eu acordo. E só tu podes ver meus olhos pequenos de mandarim, minha boca que amanhece sempre inchada, meu cabelo bagunçado e meu sorriso meio tonto.

E se durmo depois, é depois também que acordo. Acordo e, às vezes, eu te flagro olhando pra mim. Tu ali, quietinha, sabe-se lá há quanto tempo, só me admirando, com os olhos cheios de estrelas.

E o timbre da sua voz

É só no teu ouvido que ouso ronronar, usar minhas vozes roucas e baixas. Sim, eu conheço a intensidade exata que faz teu pescoço arrepiar. É só do teu lado que eu me arrisco a cantar.

que fica me dizendo coisas tão malucas

É só tu que podes ouvir minhas melhores loucuras. E rir delas. Ou compenetrar-se nas minhas besteiras sobre deuses gregos, dissecações de Dodecaedros e dissertações de Clarice Lispector. Eu posso te dizer o que eu quiser. E tu ouves, plena de atenção e fascinação. Posso te falar do sentido da vida de uma mosca que passa. Das minhas cicatrizes e crises e regras de case. Dos filmes poloneses do século passado ou dos franceses e italianos desencavados.

Pra ti eu posso declamar poemas à meia-noite. Expor minhas teorias sobre minha insônia, que depende de domingos, coca-cola e luas cheias. Posso falar de Eros e Psiquê. Pra ti eu posso contar as piadas mais sujas ou os trechos piores dos meus livros mais densos. Pra ti eu posso apontar os desenhos nas nuvens. Explicar conceitos de abertura, exposição, diafragma, foco e zoom. Só contigo eu posso dizer besteira e, ao mesmo tempo, filosofar. Só para ti eu posso perguntar o que me angustia, como a utilidade do céu, por exemplo. É só do teu lado que eu me arrisco a falar tudo.

e que quase me mata de rir

Só tu viste minhas caretas recheadas de lábios virados e piscadas bem tortas, que no segundo seguinte eu troco por minha cara de sério e te deixo rindo por boba. Só pra ti eu faço meus comentários mais sarcásticos. E tudo pra ouvir outra vez o teu riso. Só tu conheces, aliás, meu riso. Seja falso, forçado, inevitável ou bêbado. Só tu sabes o que me acontece quando bebo. É tu quem eu agarro e faço cócegas e aperto e mordo onde puder. Eu amo te fazer rir, especialmente quando tu precisas ficar séria. E é também, meu amor, só do teu lado que eu me arrisco a sorrir.

quando tenta me convencer
que eu só fiquei aqui
porque nos dóis somos iguais

Tento. Tento fazer com que tu vejas o que eu vejo. Tua inteligência, tua criatividade, teu talento. Eu anoto tuas melhores frases, meu amor. Todas cunhadas com uma sagacidade e uma sutileza que me encantam. Consigo te admirar tanto e, no entanto, não consigo te demonstrar isso sempre. Não consigo te convencer do quão maravilhosa tu podes ser. Não somos iguais, meu amor. Tu sempre serás melhor do que eu. É só do teu lado que eu me arrisco a tentar ser como te vejo.

até parece que você já tinha
o meu manual de instruções
porque você decifra os meus sonhos 
porque você sabe o que eu gosto 
e porque quando você me abraça 
o mundo gira devagar

Eu conheço todo teu corpo e o efeito de cada toque. Consigo te percorrer inteira, pele, mente, alma. Tenho, como tu disseste, olhos de te ver por dentro. Por isso adivinho o que tu pensas antes que tu o fales. E sempre te deixo tonta com isso. Sei dos teus desejos, dos teus quereres, das tuas coisas mais simples às mais complexas. E entendo. Só de olhar.

Da mesma forma, só tu conhece tudo de mim. O número do meu sapato, o nome dos meus perfumes, o castanho dos meus olhos, o mapa de pintas do meu corpo, a bagunça do meu quarto, o gosto dos meus molhos, o tamanho dos meus sonhos, o choro das minhas músicas, o nome secreto nos meus textos, a marca do meu shampoo, o meu medo por quero-queros, a minha obsessão pela leitura, o meu cheiro no teu travesseiro. É só para ti que deixo meu manual também.

E o tempo é só meu
e ninguém registra a cena 
de repente vira um filme
todo em câmera lenta
e eu acho que eu gosto mesmo de você 
bem do jeito que você é.

Tudo isso, tudo para dizer que importante és tu. Não importa quantos gostem de uma fotografia minha. É na tua casa que foi tirada. Não importa quantos comentem em um texto meu. Foi enquanto tu dormias na minha cama que ele foi escrito. Não importa quantos sorrisos me dêem na rua. É a tua boca que a minha beija.

Entende?

Tu te preocupas demais com o tão pouco meu que dou aos outros, quando na verdade me tens de um jeito que jamais outro alguém terá.

São tuas as fotos pela minha casa. É o teu nome no topo da agenda do meu celular. São teus os cartões na gaveta da cômoda. É teu o nome no topo da poesia que te dediquei. É tu que estás ao meu lado, avaliando textos que jamais serão publicados, palpitando nas cores das minhas fotos mais bobas. É tu que me aguentas clicando teias de aranha e xícaras velhas. É tu que corres na rua comigo a tentar flagrar passarinhos. É contigo que eu rolo no chão ou na cama ou na área de casa. É teu o corpo que abraço. É tua a pele que beijo. É teu o cheiro que eu gosto de sentir sempre aqui. É por ti que pico a cebola sempre tão miudinha. É por ti que tomo conta de mim. É pra ti que guardo meu melhor, meu amor. Só pra ti.

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