quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Re cordar

Recordar é viver (Mentira. Recordar é morrer de novo. É ir falando e sentir a pele esgaçar cicatrizes e as feridas abrindo tuas carnes de novo. E o sangue escorrendo muito quente. E o pus vertendo de coisas que tu fingias estarem curadas. Recordar é morrer pelos mesmos motivos ou inventar motivos novos pra dores velhas. Tu vais contando e perdendo teus pedaços podres, vermes caindo pela boca, água podre escorrendo dos olhos, terra de defunto desgrudando das unhas. Recordar é ir arrancando pedaços com a dor que isso gera. Tu comes tuas próprias partes podres enquanto recontas a história que deveria não mais machucar. E não machuca, na verdade desespera. A dor te é alheia, tu nem sentes os buracos se abrindo até eles exporem os teus ossos pretos, até derrubarem teus dentes nas mãos. Ainda é o desespero te prende ao fundo da cova.).

Ainda assim

(Recordar é viver.) Verdade. Verdade porque depois tu olhas para aqueles pedaços no chão, para aquele corpo fétido e podre e miserável e destruído e percebe que tu continuas ali. Então a surpresa de ter sido alguém lá dentro da casca. Tu corres pro espelho e te surpreendes. Não há cortes sangrando. Sequer há cicatrizes. Tua pele inteira, teus dentes na boca, teus braços sem que neles faltem os pedaços daquelas mordidas. Então trocamos também de casca? Nos renovamos feito as cobras? Tu te alegras de sobremaneira. Sim, recordar e recontar leva ao fundo do abismo, mas não mata tudo. Mata o que havia de ruim, mata o que impedia de ir adiante. Mata o que nem deveria ter nascido. Mata o que te impedia de, enfim, viver.

3 comentários:

  1. Recordar é ver tudo que já chegamos a esquecer. É também saber que a dor não foi vã.

    Não somos o passado, mas ele nos construiu.

    Ótima reflexão meu caro.

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  2. Recordar pra mim, muitas vezes está exatamente no que vc escreveu.... eu, que só agora espero a hora da libertação !!!!

    Que amanheça em mim uma recordação capaz de me libertar !!!!

    Amei, cincodezembrista. Amei !!!
    Bjs

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  3. Como diz Galeano no Livro dos Abraços: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração.

    Mas se o coração já morreu? Recordar ainda é viver?

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