domingo, 28 de agosto de 2011

De sangue amor e morte


Abandonei o sangue porque achei que ele não condizia com minhas canetas azuis. Enquanto minha escrita era de lápis mordidos, eu me sentia à vontade para falar dele. Gostava de citar, especialmente, "lágrimas de sangue" a mais pura metáfora clichezenta do meu romântico adolescente. Eu a usava mesmo que não houvesse qualquer choro.


Mas sangue havia. Sangue sempre houve escorrendo em mim. E não metaforicamente. Na adolescência eram as espinhas. Sempre alguma para verter gotas carmesins, sempre alguma para marcar de vermelho a minha cara imberbe. O sangue se tornou, de repente comum. O meu sangue especialmente. Tão banal quanto seu cheiro metálico.

Cortes não me incomodavam. O sangue escorrendo ao menos me dava o conforto do que é quente. Agora são as unhas que corto curtas demais, ou rôo, ou deixo encravar e desencravar. Hoje é pelas minhas extremidades que escorre o sangue. Sempre ele, capaz de trazer algum conforto e de me dizer alguma coisa. Como pequenas pílulas rubras a me curar a vida da única forma possível: acostumando-me à morte.

Morte também eu deixei de lado com meus arroubos de escritor agora sério. Morte era Byroniana demais, idealista demais, ingênua demais. Amor também eu tentei cortar. Deixei de ser sonhador e bobo. Censurei tudo de romântico que tentava infiltrar o meu texto, criando rachaduras e goteiras sujas.

Parte disso se deu ao ver a Doutora da Ilha dos Amores. Ela é velha a ponto de ninguém mais querer beijá-la na boca. E ainda assim, escrevia artigos sobre livros de cor rosa, encantada, absorta pela possibilidade de carinho que nunca deve ter tido. Eu a ouvi e achei tão patética. Mas no sentido que Schiller deu à palavra, para continuar no meio dos doutores.

Achei-a patética e eu. Achei-a eu. Consegui me ver ali, homem e velho e bobo falando dos faunos da ilha a perseguir doces ninfas douradas. Me vi nos olhos úmidos de vaca da mulher, sabendo que toda ela se umedecia esperando o amor que nunca lhe fora mandado.

Mas do que eu estou falando? O que estou justificando? Comecei pelo princípio de tudo, pelo sangue – e não há nascimento sem sua mácula – e agora falo da doutora velha e virgem que queria o amor gozando dentro dela. Onde eu estou? Em que ponto me perdi.

Ah, sim, é tudo sobre isso. Sobre perder-se, então.

Sim, decido, é sobre perder-se.

O sangue, a morte, o amor. Tudo besta demais, eu pensei. Tudo para ficar de fora, tudo para ser recortado dos textos, tudo para ser evitado se algum dia eu quisesse ser cumprimento por Assis Brasil. E me parecia tão importante ser cumprimentado por Assis Brasil...

E por isso tudo deveria ser renegado.

Bloqueio.

Se não há sangue por dentro.
Se não há morte à espreita.
Se não há amor pelo qual sangrar e morrer e matar.
Então pra quê?

Perdeu-se a resposta. E agora só é que eu encontro a pergunta. Eu revejo o caminho. O que eu evitei era minha essência de sempre. O que eu considerei besta e vulgar e lugar-comum era o que me definia. Era o que me fazia fluir e pulsar, como agora enquanto digito frenético nas teclas brancas e formo letras verdes na tela preta.

Eu abandonei o que me constituía. Eu cortei o defeito essencial, sem o qual o prédio não se mantém mesmo, Clarice.

E agora? Agora sangrar ainda. Agora morrer ainda. Agora amar ainda.
Agora voltar a viver e a escrever, liberto dos fantasmas meus de 68, das tarjas pretas, das metáforas torpes que transformavam morte em destruição, sangue em cacos e amor em tripas.

Agora deixar-me ser, ao menos em palavras. Nas palavras que eu posso – sim sensor – dizer.

Um comentário:

  1. A cicatriz é a certeza do que está vivo.

    Perdemos por acreditar que há posse.

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