Eu não suporto livro em supervisão de escola. Isso me deixa simplesmente possesso. Ou melhor, puto, que é como meus alunos costumam dizer. Mas - dizem Elas - é o único jeito de garantir que o livro fique conservado, bem cuidado, limpinho, inteiro...
Sim. Mas é o único jeito, também, de garantir que o livro continue morto.
O livro não quer ser "conservado, bem cuidado, limpinho e inteiro" o livro quer ser lido, com todos os riscos que isso implica. Digo isso dos livros alheios, é bem verdade, porque dos meus eu cuido com devoção e é esse o ponto.
A tática não é essa sovina de esconder os livros como se fazia na idade das trevas. O mote é ensinar o amor pelo livro, o respeito, o cuidado. Eu tenho paixão por tudo que tem páginas e penso que se reconhece um leitor pelo modo como carrega os livros na chuva: há quem os carregue sobre a cabeça, para evitar de molhar os cabelos, e há aqueles que colocam o livro por baixo dos casacos, para evitar que ele tome qualquer respingo. Eu sou desses últimos.
Esse é o ponto. É preciso ensinar aos alunos a preciosidade que o livro é, mas sem neuroses e sem barreiras. O livro foi feito mesmo para as cicatrizes.
Aquela parte riscada não está estragada, só significa que aquele trecho, de alguma forma, tocou tão profundamente quem leu, que foi necessário fazer o "X" de marcar tesouro. Aquela substância derramada não significa só uma mancha, significa que a leitura foi tão interessante a ponto de se tornar impossível pará-la na hora de beber um café. Aquela sujeira de terra não foi só um desleixo, mostra que a pessoa precisou carregar o livro por aí para ler uma parte mais enquanto esperava um ônibus. Aquelas dobras, aquelas páginas soltas, aquela lombada descolando, por Deus, a maravilha das maravilhas. Quanto melhor o livro, pode ter certeza, mais detonado ele estará nas prateleiras da biblioteca. E isso é a glória, porque ele foi lido, relido, vivido e revivido na imaginação dos seus leitor.
Quando eu for escritor - e agora voltei a querer ser - irei às bibliotecas de escola ver o estado dos livros meus. Se estiverem inteiros, desisto, vou fazer outra coisa da vida, como consertar bicicletas. Mas se lá estiverem frangalhos manchados, riscados e roídos, eu vou entender que fui lido. Vou saber que aquele livro passou por inúmeras mãos, teve vida própria e tem histórias que ele pode contar pelas suas marcas. Vou saber que aquele livro teve contato de coisa viva, teve lágrima manchando a tinta, teve raiva dobrando as folhas, teve voracidade abrindo sua costura, teve coração sublinhando o essencial. Glória das glórias, Olimpo de escribas.
Além disso, há outro fato importante. Quando você diz que um livro é tão bom (e aqui se entende bom por sinônimo de novo) a ponto do aluno não poder retirá-lo, está dizendo também que o aluno é tão ruim que não merece sequer tocar naquele livro. Deixemos disso.
É hora de iluminar os livros, fazê-los viver - pois se até em nós a vida deixa marcas e consequências.
Então, caríssimos gestores, se há livros bonitos sequestrados em suas salas assépticas e desacessadas, façamos uma faxina, joguemos os livros na vida. Coloquemos na biblioteca onde eles poderão sentir o frêmito de mãos roçando por eles, de onde eles poderão visitar outras casas, quartos, campos. Onde eles sentirão a bem vinda carícia dos olhos. Preocupem-se em como ensinar o amor pelos livros, não em defendê-los de mãos alheias.
A literatura, com certeza, agradece.
Ah, e livro bom é mesmo livro morto, desde que a morte tenha sido em combate, e não por inanição.
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