segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ameixas úmidas

Antes de sair ele pediu. Pediu ou mandou? Ando tão esquecida que agora não sei...

Torta de ameixas.

Mas é que eu não sei fazer. E os livros são tão confusos para uma mulher. A receita de torta de maçãs, por exemplo, serve se eu substituir maçãs por ameixas? Eu não sei fazer, mas também não disse a ele que não sei. Eu sorri, concordando, porque o amo mais que tudo e preciso dele para mim. Eu sou feliz. De verdade. Mesmo. Alguém não acredita em mim? Não acredita? Não acredita? Por quê?

Torta de ameixas. Ele adora. Por ele tudo.

Ameixas frescas ou em calda? Ameixas roxas ou vermelhas? Amarelas, quem sabe. Quem sabe? Anabela sabe. Mas ele não gosta que Anabela venha à nossa casa. Diz que ela é vulgar. Anabela não é vulgar, é linda, especialmente quando está com o vestido de veludo escuro, cor de ameixa. Qual ameixa?

A louça está lavada, lá em cima as camas suspiram a limpeza dos lençóis, as roupas se espreguiçam no varal, o gato dorme no sol da janela. A cozinha brilha e tudo está suspenso. Ovos, manteiga derretida – ele não gosta de margarina – farinha, açúcar, canela. A torta de maçãs leva canela, mas e a de ameixas, leva?

Se Anabela vier ele não tem como saber. Ele volta só quando a noite já é alta. Até lá a torta está assada e Anabela na casa dela. Na parede o telefone arde, chame Anabela, ele diz. Eu chamo.

Anabela vem, delicadíssima. Fuma qualquer cigarrinho mentolado, que segura com graça. Quando ela anda, ela anda toda inteira, dos cachos do cabelo ao negror das pernas, tudo faz graça. Anabela tem uma boca que não se vê em qualquer lugar. É uma boca cheia, vermelha de batom. Batom que ela mesma vende. Anabela se sustenta e não tem homem. Por isso ele a acha vulgar.

Ela me cumprimenta afetuosa, beijos no rosto, quentes, demorados, entorpecentes como seu perfume que lembra a floração das ameixeiras. Meus olhos se fecham, delicados. Fecham de quê? De delicados. Já os olhos de Anabela nunca são completamente abertos. Ela olha entre os cílios. Como se sorvesse do ar um prazer que a deixasse levemente embriagada. Anabela é pantera. E eu me arrepio.

Torta de Ameixas. Ela sabe fazer? Sabe.

Sabe, mas diz que precisa de mel. Eu tenho mel. No balcão, em cima. Deixe que eu pego. Eu pego. Eu derrubo. Eu quebro. O vidro corta meus dedos, mel e sangue escorrem nas minhas mãos em um vermelho dourado, pleno, farto, forte, doce. Anabela vem ao meu socorro. "Pobrezinha, ela diz, machucou?" Sua boca se abre. Tão carnuda a boca de Anabela. E a minha tão fina. A Língua de Anabela toca o sanguemel da minha mão. Tão vermelha a língua de Anabela e tão eriçada toda minha pele.

Mel sangue Anabela. Torta de ameixas.

Quando ele chegar não haverá o que comer. Eu já terei sido comida toda por Anabela. Até o caroço.

__________________________________
Inspirado em: What's the Use of Won'drin'? , que por sua vez remete ao Banquete , de Eduardo Baszczyn

3 comentários:

  1. estamos resumidos aos desejos, que se consomem.

    ResponderExcluir
  2. Uau!
    Amei!
    Ufa....
    Bjs, cincodezembrista sempre talentoso!!

    ResponderExcluir
  3. Relendo...
    Adoro qdo os textos ganham novas formas. Comi até o caroço: o texto, o imaginar Anabela e a música.
    Parabéns. Vc se supera, sempre.

    ResponderExcluir

Obrigado pelo seu comentário.