quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Boneca Russa

O corpo não. No corpo sou tão inevitável quanto todos vocês. Estrutura de ossos, músculos vermelhos, sangues, sêmen e outros fluídos, um emaranhado de nervos, veias e outros trapos. No corpo não há distinções, exceto pelo gato da mão esquerda e pela mancha na panturrilha, também esquerda, há muito coberta pelos pêlos das pernas.

Mas a alma, pressupondo e aceitando que possuo uma, essa é uma boneca russa. Sim, uma daquelas que quando abrimos sempre há outra dentro, e mais outra, e outra e ainda outra, ad infinitum. Só o centro, o gérmen inicial, a boneca mais pequenina, não pode ser aberta ou partida, desconfio. Desconfio porque nem mesmo eu cheguei a ela. E, se acaso chegasse, não escreveria mais. Estaria mudo ou morto. O que, em suma, é o mesmo.

A primeira boneca, a maior, tem olhos insignificantes, insossos até. Olhos de peixe fora d'água. Às vezes, em uma ousadia, ela parece ansiar pela petulância dos eleitos. Não consegue. Na primeira boneca até a petulância é um arremedo tosco. Mas ela se abre.

Quem chega à segunda boneca pode ver que eu sei coisas. Coisas que digo, que reparto, que facilmente dôo a quem pedir. Na segunda boneca estão as escritas, as fotografias, os planos e os afagos mínimos. Tudo que há de se admirar está pintado no colorido dessa madeira.

Mais fundo.

A terceira boneca é uma pândega. E só se chega à ela depois de algumas trancas. Essa tem cores berrantes, um colorido surreal e pinturas de macacos e flores e borboletas de lapela. Essa boneca faz festa e farra a quem vier. Ela é dona do riso bobo, da besteira dita, da besteira feita. É a boneca da graça e de fazer rir. É nela que se perde a pose, os óculos, a inteligência e a cultura. Nessa boneca ainda há qualquer coisa de criança. E de criança arteira. Quem só conhece as outras, nessa boneca nem acredita. E eu a escondo, bem calmo e soturno. Não é digno do tesouro quem não sabe da senha certa.

Quando se chega à quarta boneca encontra-se a ira. Ela foi toda entalhada e pintada pela loucura azul de Ághata. Nela tudo fere como espinho. É a boneca desvairada, a que não se cala. A que implora por briga e só dá tapa de luva. É aquela que chega quando invocada e parte depois do estrago já feito. É minha boneca de vingança e sangue alheio no chão.

Já a quinta boneca é toda preta e branca. Tem uma lágrima pintada debaixo do olho esquerdo. Quase imita um daqueles arlequins que por muito tempo assombraram meu quarto de infância. Essa boneca é de arrepios e quando nela há respingos vermelhos, eles são de puro sangue meu. Essa boneca é adoradora de coisas mortas e uiva pra lua sempre que lhe solto as cordas. É uma das mais finas. Aqui a madeira quase se parte ao menor sopro de vento. É a boneca dos silêncios que não se explicam, das escuridões em dia claro, das masmorras e dos calabouços frios. Não gosto dela, mas ela existe independente do meu gostar. E quase a venero por isso.

A sexta boneca, e aí já é querer ir fundo demais, só uma pessoa conhece. É uma boneca toda tingida de encarnado. É a boneca dos sussurros de dar arrepio bom. É a boneca de mordidas leves no pescoço. De voz rouca e grossa, de puxões e arranhões com unhas de gato. É a boneca que sabe francês, a única delas, e ainda melhor, sabe usar do francês. É a boneca de olhos agudos, de seduções altas, de sensações, de roçar de peles. É ela a aranha responsável por tecer todas as teias, venenosa a ponto de se desejá-la. Vinhos, luares, sabores, bocas e dentes, toda ela é só isso. É força e puxão, é pegada e o sexo no que há de animalesco. E ela tem mesmo traços de bicho. É a que não escuta e que urra, que não toma consciência da própria força, do próprio porte. É aquela a quem nada mais sossega, senão o próprio gozo.

Quando se parte o que é rubro, desponta a sétima boneca. E aqui meu medo já aumenta. Dessa eu mesmo sei pouco. Sei que tem segredos. Sei que age como se fosse Pandora, ou antes sua própria caixa. É ela quem tem lábios costurados, atados nas coisas que não conta, nas coisas que só insinua, nas coisas que poderiam ferir - ou matar. A sétima é a única que realmente chora e não sei a quem ela deixa ver suas lágrimas. No meio dela há a cola. Dela não passo. Nem ninguém passou ainda. Na sétima a aventura minha termina. Mas balançando-a bem, eu sei, é possível ouvir mais. Dentro dela há outras. Muitas até chegar ao cerne que esgota tudo mais.

Eu paro. Temeroso e fiel, eu paro. Mais uma e meu medo seria grande demais. Paro em Pandora e no que ela contém. Paro para minha própria sorte. Deixo ainda dormir aquilo que quer dormir. A boneca menor - e a mais perigosa - ainda reside no ventre de todas as todas. E que assim seja até o seu momento chegar. E que ele demore. E que eu resista. E que alguém assista, nem que seja para contar de toda beleza e horror que pode haver escondido no fundo de mim.

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