Olhos. Ele se resumia a dois grandes olhos vivos e arregalados. Sempre. Seus olhos eram, na verdade, dotados de uma divina gula por mundo, tudo ele queria que coubesse ali. Na casa nada se dava longe daquele par de olhos. De cada barulho, ele capturava por eles o motivo. Cada coisa nova era devidamente registrada. Feito uma coruja muito arrepiada e arregalada, o gato passava a vida a olhar as coisas.
Foi de repente.
De repente não o entendemos mais. Tinha os olhos sempre semi-cerrados, sonhadores e sedutores; felinos. Como se alguém lhe houvesse matado a curiosidade, sem ter matado o gato. Tudo se tornou insignificante. Teria ele comido o mundo por aqueles seus globos verde-amarelados? Teria saciado sua fome de ver, enfim? O comportamento também mudou. Ele, que sempre fora dado à hábitos quase caninos de brincadeiras e saltos, agora se mantinha lânguido, aéreo, pouco dado a qualquer realidade.
"Mas que doença tem esse gato?" Ághata seguia-o na esperança de diagnosticá-lo, como faz com tudo mais que lhe escapa. Até que um dia o flagrou. Estava metido em carinhos ternos com um abandonado gato siamês, ainda mirrado. O siamês fugiu, pulando o mesmo puro pelo qual entrara no pátio.
Ainda bobo e hipnotizado, Avalon demorou-se a perceber o que havia. Até se dar por segui-lo, o outro já ia longe. Tristeza. Dos olhos quase fechados vertia tristeza. Minutos depois apareceu neles a esperança. Ele voltaria. Os amores sempre voltam.
Plantou-se o Avalon, então, com todo seu porte de leão negro, a esperar pacientemente sobre o muro antigo. Cada farfalhar de folha, cada ciscada de passarinho, cada fruta caída do pé, era um susto. O coração disparava a todo ínfimo barulho: Era ele! Não, nunca era. Naquele dia o outro gato não voltou. E nem o Avalon desceu do muro.
Eu olhei e sorri. Entendia bem o que era aquela espera dos apaixonados. Eu me via refletido no gato. Lembrava bem de estar na janela alta, esperando. De me encher de esperança e alegria e glória a cada barulho equivocado. Benditas as esperas dos apaixonados. Benditos os que tem a quem esperar.
Depois Ághata sentenciou: "Tu viu teu gato? Coitado! Apaixonado por outro gato..." É. Avalon está mesmo apaixonado. A ele não importa que o outro seja também macho. Tampouco sua própria castração importa muito. Ele ama. Ama por. Ou ama apesar de. Na verdade, não importa. Nunca importa. Ele ama. Isso é tudo. Ama e é correspondido.
Desde então temos outro gato aqui, embora outro do mesmo. Nada mais daquele Avalon espoleta, curioso e quase cão. Agora temos um gato de passos trocados e leves, de olhos sempre sedutores, de pausas demoradas e observações sutis. Temos, enfim, um gato felino. Tão felino quanto se pode ser apaixonado.
Agora, todas as tardes, enquanto Ághata dorme e eu me deixo invadir pelo meu próprio infinito, um gato espera pelo outro encima do muro. E o outro vem, religioso. Entre os beijos e os trevos de três folhas só, passam pintados de sol trocando carícias e lambidas e afagos. Tudo enquanto ninguém os vê. Criaram seu próprio paraíso no jardim em que impera qualquer coisa de uma loucura de primavera.
Eu queria amansar o outro gato, caso seja mesmo abandonado. Dar-lhe inteiro ao meu Avalon. Mas talvez ele não gostasse disso. O proibido das flores tem muito mais razão de ser. Se fosse também meu o outro, seria menos dele. Entendem? Além disso, não haveria mais o milagre da espera, do sofrimento de cada barulho não feito, e menos ainda da glória de vê-lo chegar com seus olhos azuis.
Então deixo tudo assim. Deixo porque é primavera e porque sei que, por enquanto, há amor no meu jardim.
E quando vai tudo bem, é melhor evitar até mesmos os sussurros, a vida é frágil.
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