quarta-feira, 31 de março de 2010

Da minha mediocridade (ou simplesmente Bliss)

Me abstenho de comentar em textos perigosos, da mesma forma que não subo à corda bamba por mera diversão. Mexer com venenos em copos de vinho não serve mais ao homem vulgar que sou. Entenda-se por vulgar não chulo, mas medíocre. Vulgar no sentido de comum.

É que com o tempo a gente fica mediano mesmo, querendo uma vidinha bem burguesa e asseada, limpa até por detrás das orelhas. Com os anos eu, que andava envolto nas sombras da noite, passei a caminhar no meio das ruas, plenamente iluminado por postes de luz alaranjada. Eu, que não ligava para os embrulhos, agora os carrego agarrados ao peito, temendo qualquer sinal de um meliante delinqüente.

É que a gente perde o tino de aventura, porque, de repente, parece ser imprescindível jamais perder o que se conquistou. E a aventura implica em perdas. Então nos abstemos de sentir, de ir além, de andar no escuro. Agarramos nossos pacotes com firmeza, como se dentro deles houvesse uma felicidade qualquer. Não há. Há o tédio cotidiano, ao qual, invariavelmente, nos habituamos.

Eu, que de jovem fui tão extremo, hoje olho com reprovação para qualquer ousadia. Ando até mesmo ficando chocado à toa, balançando a cabeça em negativa muda, qual senhorio do século XVII. Escandalizado com a não-artificialidade da vida.

Acho que penso assim: “A vida, meus amigos, tem que ter protocolo. E parcimônia, e comedimento, e previsibilidade. A vida tem que ser ensaiada e seguida pelo roteiro, sem improvisos, sem destoâncias, protocolada mesmo”.

Eu digo isso e uma parte minha gargalha. Eu abafo a gargalhada e sorrio pedindo desculpas ao ar. Não é possível tolerar qualquer manifestação assim, mais sincera e explosiva. Isso pertence aos animais, não a nós, humanos e burocráticos.

Caí nos contos em que nunca acreditei. De repente a felicidade parece mesmo isso, de promover jantares aos amigos, cuidar para que a torta não queime no forno, servir café fresco e depois dormir cedo, com pijama de listrinhas e meias nos pés.

Ser feliz, de repente, me é estar satisfeito. Simplesmente satisfeito, nem mais, nem menos. E isso é medíocre. É medíocre para quem não queria fingir sorrisos, não queria assar tortas, não suportava café e sempre preferiu dormir nu. É medíocre para quem queria ser poeta byroniano, decadente e um pouco gótico. Ser um simples homem, enfim, é medíocre demais para quem já se chamou de “Anjo Maldito”.

7 comentários:

  1. Um dos melhores textos que já li, não vou nem me atrever a fazer um comentário :)

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  2. Que o diga eu. Eu ensaio e reensaio todas as falas que direi durante o dia. Mas, não raro, nem as digo todas.

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  3. Sobre o título.

    Para compreender, ler Bliss (ou Felicidade) de Katherine Mansfield.

    http://www.releituras.com/kmansfield_bliss.asp

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  4. Ler Bliss sem orientação também não vai prestar. Numa dessas me interpretam mal.

    O conto retrata uma felicidade medíocre, burguesa mesmo. A protagonista é feliz porque possui tudo que era esperado de uma mulher da época.

    Ao ocorrer uma espécie de "desconstrução" daquela realidade, ela não sabe bem o que fazer. Na dúvida, não faz nada. Prefere manter sua (aparente) felicidade.

    - - -

    Pronto, agora dei para estragar também os contos alheios. Perdão, Katherine.

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  5. Perfeito esse texto.
    Não tiraria e nem acrescentaria nada.
    Vc escreve bem e deve valorizar isso... deve mostrar isso.
    Perfeito mesmo.

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Obrigado pelo seu comentário.